Por: Alexandre Arruda, Camila Pusiol, Julia Araujo, Leonardo Pimentel e Yago Rosseto.
Para muitos, aquele era apenas o mar calmo, sereno e bonito de Florianópolis, uma das capitais mais exuberantes do sul do país. Pronto para divertir e tranquilizar os turistas e moradores que por ali passavam. Mas não para tradutora e intérprete Bárbara Guimarães, de 49 anos, criada em uma família de ateus convictos. Era abril de 2014 e, para ela, aquela visão fascinante era a oportunidade perfeita para se aproximar novamente de uma de suas divindades favoritas: Iemanjá, a Rainha do Mar. Um dos orixás mais cultuados e respeitados tanto pelo candomblé quanto pela umbanda.
Apesar de sua origem ateia, Bárbara sentiu, ainda muita nova, a necessidade de buscar uma religião que pudesse aplacar suas dúvidas e, principalmente, seus anseios. Dessa forma, ao longo de sua vida, ela passou por diferentes doutrinas, indo do catolicismo ao budismo e do espiritismo a umbanda. Em cada uma dessas experiências, Bárbara pegou algo para si: um versículo, um orixá, uma palavra, um ensinamento. E ali, diante do mar imponente de Florianópolis, viajando com a mãe ateia, isso se repetia.
Em um momento de espiritualidade, Bárbara se abaixou na beira do mar e fez uma prece silenciosa à Iemanjá, pedindo para que a deusa iluminasse seus pensamentos, seu coração e, principalmente, suas palavras. Na sequência, ela e a mãe continuaram conversando e passeando pela cidade, até Bárbara avistar uma igreja franciscana e se sentir motivada a entrar no local. Para aqueles que não sabem, São Francisco de Assis é um santo católico, conhecido por ter renunciado toda sua riqueza para viver em prol dos mais necessitados. Talvez seja por isso que a moça o considere como um de seus favoritos, afinal, assim como ele, ela também se dedica por completo ao outro.
Ao ver aquela igreja simples, Bárbara não resistiu ao impulso: entrou, fez outra prece silenciosa e acendeu uma vela ao “Pai dos Pobres”. Assistindo aquela cena, um tanto quanto cética, a mãe ateia não se conteve e a questionou ironicamente: “você literalmente acende uma vela para cada santo e acredita em tudo ao mesmo tempo, né?”
Ao que moça apenas sorriu e respondeu, com gentileza, “é verdade, eu realmente acredito em tudo ao mesmo tempo”. Continuando, em seguida, o seu caminho.
O pai de Bárbara, Gabor Aranyi de 76 anos, veio de uma família judia, mas acabou se tornando ateu em função dos traumas da guerra. Seus pais foram enviados para um campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial e, por isso, ele se ficou órfão com apenas 12 anos de idade. O que, consequentemente, gerou nele um ceticismo em relação a própria vida. Nascido na Hungria, Gabor veio para o Brasil logo depois, quando tinha cerca de 13 anos, acompanhado de uma família adotiva.
Aqui, conheceu a mãe de Bárbara, Maria Cristina Guimarães Cupertino, 75, ainda na faculdade, fazendo Ciências Sociais. Apesar da família de Maria ser católica, ela também se tornou ateia ao decorrer da vida, por influências políticas. “Meus pais eram de esquerda, marxistas e, por isso, acreditavam que a religião era o ópio do povo”, explica Bárbara. “Isso era engraçado, porque eles sempre me falavam que a religião é uma bobagem, que a gente não acreditava em nada disso… Mas pediam para não sair falando disso por aí. De certa forma, eles tinham medo de que eu pudesse sofrer algum tipo de preconceito, se saísse por aí comentando sobre essa condição”, relembra, rindo.
Durante sua infância, a jovem já tinha tido alguns contatos com a religião. Sua avó materna, por exemplo, a levou para a Igreja Católica em algumas oportunidades. Além disso, Bárbara chegou a residir próximo a um colégio de freiras enquanto ainda morava em Uberlândia, no interior de Minas Gerais, com as quais rapidamente fez amizade. “Eu sempre conversava com as freiras. E gostava muito daquilo, elas me levavam para ver a casinha de Jesus e outras coisas assim”, comenta, saudosa.
Ainda assim, Bárbara escolheu seguir um caminho bem diferente daquele trilhado pelos seus pais. Por volta dos 14 anos de idade, a jovem começou a ter algumas sensações espirituais que a fizeram acreditar que, realmente, existia algo além do plano terreno. Isso aconteceu quando um tio, de quem ela era muito próxima, morreu. No dia seu aniversário, Bárbara entrou sozinha no banheiro e de repente sentiu a presença dele ali e, mesmo sem entender o que estava acontecendo, aquilo a emocionou bastante. “Eu fiquei ali pensando: o que que é isso, o que está acontecendo comigo? Algumas pessoas podem me dizer que isso tudo foi coisa da minha cabeça… Mas como eu vou me convencer disso, se aquela foi uma sensação tão forte, tão concreta? Eu só fiquei dizendo ‘meu tio querido esteve aqui, veio me desejar um feliz aniversário’”, relembra.
Pouco tempo depois desse episódio de mediunidade, a jovem resolveu aceitar o convite de uma amiga e começou frequentar um centro espírita da região, iniciando assim sua jornada pessoal em busca do Sagrado. Essa foi a primeira vez que Bárbara foi procurar uma religião por si só, chegando, inclusive, a fazer um desenvolvimento de mediunidade por lá. “Eles falavam que ainda estava cedo para começar, mas ao mesmo tempo diziam que eu estava sentindo algumas coisas, algumas manifestações e, por isso, eu devia aprender a trabalhar com elas de alguma forma”, comenta.
Segundo o psicólogo Leonardo Martins, mestre e doutor em Psicologia Social e da Religião pela Universidade de São Paulo, o caminho para uma crença não precisa ser, necessariamente, retilíneo. Mas é claro que, quando crescemos sob a rege de uma determinada crença, o mais comum é que a gente continue trilhando esse mesmo caminho para sempre. O que não quer dizer que as pessoas não possam vir a divergir desse sistema em algum momento de suas vidas. “Nesse caso, o que vai acontecer é que as pessoas que decidem se desligar desse sistema enfrentam um caminho bem mais tortuoso do que aquelas que continuam na mesma trajetória. Porque os separatistas estão sujeitos a uma condição de redescoberta, através da tentativa e do erro”, defende.
De certo modo, a trajetória de Bárbara também confirma essa afirmação. “Eu sempre fui muito topetuda. Sabia que aquilo que eu sentia não era uma viagem da minha cabeça. Não que eu andasse por aí vendo pessoas, mas eu sentia alguma coisa que não tinha explicação dentro daquela visão racional que meus pais podiam me oferecer”, explica Bárbara. Segundo ela, esse contato inicial com o Kardecismo apenas reforçou suas impressões e perspectivas sobre a existência de um plano divino. “Eu sempre falo que fui São Tomé, e como São Tomé, também me provaram”, resume, sorridente.
Com o passar dos anos e cada vez mais madura, Bárbara acabou desenvolvendo suas próprias crenças e convicções pessoais. Ela nunca frequentou apenas uma religião, por exemplo, simplesmente por não concordar que existe apenas um único Deus ou uma verdade absoluta. Para ela, todas as divindades religiosas são formas diferentes que servem, mais ou menos, para o mesmo propósito, sendo representadas apenas por culturas distintas. Como é o caso dos orixás na umbanda e dos santos no catolicismo.
“Os santos são muito parecidos com os orixás. Cada um deles traz um significado e uma forma de proteção que serve a um determinado fim ou propósito. Para mim, todas essas entidades são apenas representações espirituais e, como representações, elas possuem a força que a gente decide dar para elas”, explica Bárbara.
Segundo Leonardo Martins, isso acontece porque as religiões, ao longo de suas evoluções, incorporaram diversos elementos e fundamentos uma das outras. “O catolicismo, por exemplo, incorporou uma série de festas religiosas pagãs, além de feriados e datas comemorativas que já existiam. A gente também vê isso nas religiões de matrizes africanas, que representam suas divindades de acordo com os santos católicos. É o caso de Iemanjá e Nossa Senhora Aparecida, por exemplo”, compara.
Para Bárbara, além de exercer uma função de organização social, a religião também é importante para nos ajudar a lidar com os sofrimentos e frustrações da vida. “A religião existe, exatamente, para desangustiar. Claro que cada doutrina vai fazer isso de acordo com sua cultura e com suas próprias crenças. Mas no fim, todas as religiões servem basicamente para este mesmo fim: conceder um conforto humano”, reflete.
Durante muitos séculos, a religião (sobretudo o Cristianismo) esteve na vida cotidiana dos brasileiros e no centro da existência humana. O calendário religioso, por exemplo, com suas festas sagradas e tempos litúrgicos, servia para regular a coletividade. As pessoas eram educadas para o mundo religioso. Se você pega o Pentateuco, que são os cinco primeiros livros da Bíblia: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, você encontrará coisas que eram noções de saúde naquela época. Não era uma questão que Deus mandou, literalmente, fazer aquilo. E sim uma questão de bem-estar social. “O Levítico diz expressamente que você não pode matar ou dormir com uma mulher casada, por exemplo, porque quem fizer isso vai para o inferno ou sei lá mais o quê. Então existem várias leis no Levítico que são construções sociais e, por isso, é interessante entender o porquê de elas existirem”, complementa Bárbara.
No entanto, o campo religioso também foi atingido por transformações sociais e coletivas, criando-se então a ideia de uma crença subjetiva, individualista, complexa e, muitas vezes, desligada de instituições ou preceitos religiosos. Cada um pode crer naquilo que faz mais sentido para si. Ou seja, o “Sagrado” passou a ser algo relativizado, transitório, subjetivo e por que não, migratório. “Hoje você tem várias igrejas ao seu alcance, se você não quiser uma propriamente dita e preferir optar por uma filosofia de vida, por exemplo, existem as filosofias orientais também”, pondera Bárbara.
Um dos fatores que contribuíram para o posicionamento da moça foi a herança judaica herdada de seu pai, somado ao lado de cientista social transmitido pela mãe. Afinal, desde pequena, Bárbara foi muito cobrada para questionar e, principalmente, entender a lógica e o sentido das coisas. “A visão racional que herdei da minha família sempre me acompanhou em cada igreja por onde eu fui. Então, a cada vez que eu ouvia um sermão, palestra ou até mesmo uma aula, eu pensava: essa parte eu não concordo… Isso me fez questionar todos os ensinamentos das igrejas pelas quais passei”, conta.
Para o teólogo Denis Souza, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo e doutorando em educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a ideia de secularização da sociedade vem sendo difundida desde o iluminismo. Segundo essa ideia, o avanço na área das ciências e tecnologia colocariam o homem em uma situação de independência em relação ao Sagrado. Contudo, o que vemos, segundo Denis, “é o reaparecimento da religião e a expansão de novos movimentos religiosos. Isso revela que a necessidade de transcendência espiritual ainda é muito presente na natureza humana. E tanto a subjetividade quanto o processo social direcionam o homem a esta busca”, defende.
Já para o psicólogo Leonardo Martins, cada vez mais existem crenças individualistas que não estão ligadas a instituições ou preceitos religiosos. Essas crenças da chamada “Nova Era” incorporam diversos elementos religiosos e culturais, mas as pessoas podem se servir apenas daquelas que estiverem de acordo com os seus próprios valores e necessidades. “Você pega cristais, orixás, astrologia e o que você quiser, fazendo um mix da sua própria crença. Afinal, o que é sagrado hoje, pode não ser amanhã”, explica.
Ou seja, para o especialista, nos dias atuais, nós contamos com uma espécie de “self service de religiões”. O que significa basicamente que, durante nosso processo de crença, podemos pegar diversos elementos do candomblé, da umbanda, do catolicismo, do espiritismo, do misticismo e do paganismo. “Ao longo da nossa criação, a gente incorpora uma série de ensinamentos religiosos e esotéricos e, no fim, acabamos nos tornando um produto final de nossas próprias crenças”, defende.
Ou seja, para o especialista, nos dias atuais, nós contamos com uma espécie de “self service de religiões”. O que significa basicamente que, durante nosso processo de crença, podemos pegar diversos elementos do candomblé, da umbanda, do catolicismo, do espiritismo, do misticismo e do paganismo. “Ao longo da nossa criação, a gente incorpora uma série de ensinamentos religiosos e esotéricos e, no fim, acabamos nos tornando um produto final de nossas próprias crenças”, defende.
Ou seja, a crença religiosa no paradigma da modernidade é uma questão ambivalente e incerta. Cada um faz a sua de acordo com suas necessidades, sendo que os valores finais são aferidos pela própria pessoa. É o caso de Bárbara. Depois de longas buscas, ela constatou que não precisava seguir apenas uma doutrina e nem se identificar apenas com uma religião. Hoje, ela garante que pode encontrar o Sagrado em diversos lugares e em diferentes momentos. “Seja como for, é uma conexão com o Sagrado. E eu acredito muita nessa conexão, porque eu já a senti na minha vida muitas vezes. Eu acho que quanto mais eu vou seguindo, menos certezas absolutas eu tenho. “Eu simplesmente aceito o que chega até mim, seja de qual doutrina for”, explica Bárbara.
De acordo com suas experiências pessoais, Bárbara garante que algumas religiões facilitam mais o autoconhecimento do que outras. Por exemplo, as doutrinas orientais não teístas, como o budismo, acreditam que o caminho para a libertação está na consciência individual e que essa liberdade só pode ser alcançada por meio de práticas como a meditação. Por isso, segundo Bárbara, o processo de autoconhecimento dentro dessas filosofias costuma ser mais natural e simplificado.
“Para mim, a umbanda e o candomblé, de certa forma, também estimulam o autoconhecimento. Porque essas religiões afirmam que você é filho de um dos orixás e que, por isso, suas características pessoais também derivariam deste orixá em específico. Quando a pessoa fica sabendo disso, ela vai procurar as particularidades e tenta seguir os preceitos deles”, analisa a tradutora.
No entanto, algumas religiões monoteístas como o catolicismo e as religiões neopentecostais, por exemplo, acabam atrapalhando este processo de descobrimento pessoal. Devido, principalmente, aos seus dogmas enraizados que, muitas vezes, se refletem também em preconceitos ou opiniões populares, como por exemplo, a questão da justiça divina. “Eu realmente não acredito em justiça divina para esta realidade. Se houver justiça divina, ela é para quando a gente sair daqui. Não é justo uma pessoa ser castigada por uma coisa ruim e outra pessoa que fez a mesma coisa passar ilesa. Então, não existe justiça divina na desgraça. Isso é o mundo. Isso é a vida. Isso é a morte. Isso é o destino. Como você quiser chamar, mas não é Deus. Eu não acredito na existência desse Deus punitivo empurrado por algumas religiões”, defende Bárbara.
Para Bárbara, a solidariedade deveria ser a função social de todas as religiões. Afinal, a caridade é algo que as religiões pregam bastante, mas ainda precisam fazer mais. Em contrapartida, ela garante que só se sente viva quando está ajudando alguém “Minha vida não faz sentido se eu não puder ajudar o outro. Pode ser qualquer coisa, não me interessa o tamanho. Pode ser uma causa social, pode ser ajudar aqueles vendedores do parque da Água Branca que estão sendo colocados para fora ou uma amiga que saiu de um relacionamento abusivo, enfim… A grande questão é que eu tenho que estar envolvida. Isso é uma coisa que eu acredito muito. Nós estamos aqui para se ajudar”, garante.
Talvez, seja por isso que, durante sua jornada espiritual, Bárbara tenha tentado buscar algo de concreto em todas religiões que conheceu, mas a única coisa que ela conseguiu identificar foi amor. “Eu acho que o amor é sim uma verdade absoluta.” É muito difícil falar que o amor não é a melhor solução porque, para mim, é o que faz mais sentido. Viver em prol do outro, sabe? Acho que isso é a coisa mais linda que alguém pode dizer sobre Deus e, se a pessoa aprender isso, ela já está no lucro”, finaliza.