
A visibilidade feminina
no universo geek
Daniely Vicentini, Dianna Puertas, Gabriela Ferreira, Herson Scott, Maykon Oliveira
Além das telas e das páginas de aventuras
A sexualização feminina sempre existiu nos quadrinhos, filmes e séries e a mulher, tratada como objeto com traços que focavam em suas curvas e expunham seus corpos, era vista como algo presente em produtos de entretenimento apenas para o prazer masculino. Movimentos em prol de igualdade de gênero e representação da figura feminina ganharam força nas redes sociais nos últimos dez anos, a fim de expor os alarmantes níveis de sexualização e objetificação presente nas mídias culturais e de entretenimento.
O assunto vem ganhando ainda mais visibilidade desde lançamentos como Mulher Maravilha (2017) e Capitã Marvel (2019), longas de grandes estúdios baseados em quadrinhos e protagonizados por mulheres. Devido ao grande sucesso dos filmes – principalmente com o público feminino – uma onda de comentários machistas e sexistas surgiu nas redes sociais, inclusive com tentativas de boicote às produções. Por sorte, a maior parte dos fãs foi contra as ações e saiu em defesa das obras, que se tornaram grandes sucessos de bilheteria.
Assim, a internet fez com que a cultura pop ganhasse denominações que podem agregar diversos sentidos; entre eles entendemos que o conjunto de textos, narrativas, produtos e experiências norteadas pela lógica midiática de entretenimento e da indústria da cultura fazem parte da transformação da cultura midiática em cultura popular. No entanto, nessas histórias de heróis e outros seres místicos, existe a construção nociva de um estereótipo corporal e exageradamente sexista apenas para agradar o que é considerado, por muitos, o público alvo do gênero de ação e aventura: os homens.

Capa de The Sensational She-Hulk n°40, em que a personagem aparece nua, coberta apenas por um papel
Não é preciso uma busca aprofundada em filmes, livros e quadrinhos para encontrar descrições de cenas que mostrem uma visão da personagem através do olhar focado nos seios, virilha e posições que tem o único objetivo de expor suas curvas. Esse modo de retratação de uma personagem ofende o público feminino, que se sente como objeto de consumo e desejo. O maior problema dessa visão agressiva é a forma como as mulheres perdem sua personalidade e se tornam apenas um instrumento narrativo visual, uma ferramenta de manipulação atrelada ao teor sexual de sua representação nesses universos.
Bianca Almeida Alves tem 18 anos, é professora de inglês e colecionadora de livros, quadrinhos e outros produtos da cultura geek. Em sua análise sobre a sexualização de personagens femininas, ela evidencia os padrões e papéis desempenhados por homens e mulheres na sociedade. “Homens aprendem a serem livres e autônomos; é o público para o qual as empresas planejam, criam e vendem. É a parte criativa da coisa. Homens podem sonhar e serem o que quiserem: pilotos de corrida, astronautas e até mesmo super-heróis ou grandes vilões. Eles sempre estão não apenas inseridos no contexto, mas frequentemente em evidência. A representatividade feminina em relação aos quadrinhos e filmes ou séries de herói é extremamente importante exatamente por essa questão, ver que mulheres também podem estar em igualdade sem estarem inseridas em contextos sexuais ou necessariamente românticos. É revolucionário.”
A discussão que visa retratar os gêneros com igualdade não é nova, mas foi a partir da ascensão dos filmes de equipes heroicas e times superpoderosos nos anos 2000, com a chegada de X-men e os filmes da Marvel Studios, vimos pela primeira vez mulheres retratadas em pé de igualdade, sem foco nos corpos e ângulos sugestivos. Em uma época em que é necessário ter consciência do que pode fazer mal a uma pessoa ou o grupo ao que ela pertence, o sexismo presente nessas obras de ficção continua sendo algo que merece ser desestimulado e que sofra mudanças para o avanço de uma sociedade mais justa e menos apelativa.
Como destaque na forma correta e adequada de como uma heroína deve ser retratada em uma produção, seja para TV ou cinema, Bianca reflete sobre a personagem Jessica Jones, que possui uma série de mesmo nome e que está totalmente fora da curva quando o assunto é a polêmica envolvendo a estrutura física de personagens ou atividades ditas como masculinas.
“Ainda que com um número pequeno de heroínas em comparação aos heróis homens nos universos da Marvel e DC, nunca tivemos um número tão vasto de heroínas ou com tamanho protagonismo como nos dias atuais, se tornando algo que nós, mulheres, vemos como muito mais que positivo. Jessica Jones, heroína criada e desenvolvida no universo Marvel, é um ótimo exemplo a ser citado quando falamos sobre representatividade não apenas feminina, mas feminista. Com poderes de força, velocidade, resistência e regeneração sobre-humana, se empenha a salvar pessoas. Para nós, mulheres, nosso problema nunca foi ocupar o espaço que nos é dado desde os primórdios, nosso problema é saber que somos capazes de muito mais e mesmo assim, após muitas tentativas dolorosas e também conquistas incríveis ainda temos um espaço pequeno em relação aos homens, e isso nós ainda mudaremos.”

Poster da série Jessica Jones na Netflix
A discussão vai longe, afinal, décadas desse uso de linguagem e retratação em diversas mídias não surgiram da noite para o dia. Foi necessário que o assunto repercutisse até que se tornar-se um estopim para o debate acerca do que está errado nessas produções, o que pode ser mudado, e como é possível em plena época dos filmes de Blockbusters que uma história possa retratar a vida de mulheres fortes e protagonistas sem reduzi-las a parceiras românticas, frágeis, e o pior de tudo: objetos de desejo sexual.
Quadrinhos inovando e quebrando estereótipos
As histórias em quadrinhos ganham notoriedade e continuam relevantes em tempos atuais por manterem em seu cerne a condição privilegiada de fazer paralelos, de forma lúdica, com personagens superpoderosos e arcos mirabolantes aos acontecimentos e situações que moldam a sociedade e suas gerações.
Marcos históricos como a luta por direitos humanos e seus protagonistas revolucionários: Martin Luther King Jr. e Malcon X, inspiraram a criação do grupo de mutantes X-Men e seus lideres antagonistas, Professor Xavier e Magneto. Períodos culturais marcantes como o Blaxploitation – movimento cinematográfico norte-americano dos anos 1970 de filmes produzidos e protagonizados por atores e diretores negros – guiaram personagens como Luke Cage (o homem a prova de balas) e Misty Knight, que ao longo dos anos se adaptam e proporcionam uma plataforma única para dar voz aos discursos de todas as gerações.

Capa de The X-Men n°01, primeiro quadrinho dos heróis
Por mais que, ao longo dos anos, roteiristas e quadrinistas tenham lançado uma luz em questões relevantes para a sociedade, também negligenciaram a forma que as figuras que ocupam o holofote de suas histórias são retratadas, com personagens desenhados em medidas irreais e super-heroínas com uniformes sexualizados.
Sobre a representação feminina nas páginas de quadrinhos, a publicitária Ediliane de Oliveira Boff, que em seu doutorado tratou sobre o tema, comentou: “Nos encontramos em outro momento, o de como a representação é realizada. Simplesmente a presença feminina significa alguma coisa, porque ela afirma que a mulher está participando. Mas, por outro lado, ela pode ser usada de forma que mantenha estereótipos e a sexualização. É aquela história, o mais importante é a presença, depois é ver como está essa presença. A gente não aceita mais que uma heroína tenha que ficar fazendo pose sensual o tempo inteiro”.
Pensando nisso e com base em uma matéria publicada no site da revista Super Interessante, elaboramos um infográfico com 7 dicas de como retratar de maneira correta uma super heroína.

Dentro do vasto selo de equipes super-heróicas da editora Marvel Comics, quadrinistas sempre pecaram na retratação das mutantes de X-Men, assim como as demais personagens neste universo. Porém a casa de ideias está em sintonia com os alertas de seu público, e em 2018 o arco X-Men Red contou a história de Jean Grey assumindo o manto de líder do grupo, atuando na linha de frente para mudar o ódio e o preconceito ao perceber um mundo ainda polarizado, onde os mutantes sofrem.
Escrito por Tom Taylor e ilustrado por Mahmud Asrar, a saga gerou um marco na representação de suas heroínas, recriando o design de seus uniformes e redesenhando as proporções de seus corpos. O arco chegou a ser elogiado pela atriz Alexandra Shipp, interprete da heroína Ororo Monroe (Tempestade), que disse em entrevista: “Eu finalmente me vejo ao ler um quadrinho”.

Página de X-Men RED n°04, onde é possível observar as mudanças nos uniformes das personagens
Uma luta que ganhou força no cinema
O debate acerca da visibilidade feminina ganhou novos ares quando o cinema passou a representa-las como protagonistas fortes, independentes e suficientes para se salvarem sozinhas. As grandes franquias cinematográficas investiram em representantes fortes no gênero e, dessa forma, conquistaram um novo público disposto a lutar pela causa e conscientizar os fãs dessas obras. Para exemplo dessa revolução, temos as personagens Katniss Everdeen (Jogos Vorazes), Rey (Star Wars), Hermione Granger (Harry Potter) e até mesmo nas séries voltadas à TV, como Daenerys Targaryen do fenômeno Game of Thrones.
O estereótipo de princesa em apuros caiu em desuso quando, pela primeira vez, as representantes do gênero feminino empunharam arcos e flechas, adagas, espadas, escudos, e até controlaram grandes exércitos de soldados e de dragões. O aspecto emocional também sofreu mudanças, e nesta mais recente era temos histórias que não possuem um motivo afetivo para funcionarem sozinhas, e nem mesmo o já clichê choro narrativo, explosões de ânimos e o desequilíbrio mental.
As heroínas tornaram-se verdadeiros chamarizes no momento em que Mulher Maravilha, lançada pela DC Comics, apareceu como protagonista solo de sua própria história e desbancou diversas produções ao arrecadar mais de 800 milhões de dólares em ingressos vendidos mundialmente em 2017. Em 2019, com a história de uma piloto de combate que adquire poderes capazes de salvar a galáxia, Capitã Marvel, a primeira protagonista de filme solo mulher da Marvel Studios, marcou época ao se tornar uma das dez maiores bilheterias de todos os tempos, chegando a 1 bilhão e meio de dólares.

Brie Larson em cena como Capitã Marvel
Giulia Garcia, 21 anos, ilustradora profissional, traça uma análise a respeito dessas obras e como estão rompendo barreiras ao serem retratadas de forma diferente em relação ao passado. “A gente está vivendo em um momento que barreiras estão sendo quebradas. Há 20 anos a gente não tinha tanto acesso a essas informações. Como mulheres, existia uma sensação de que a gente não pertencia àquilo, e hoje não, a gente tá quebrando com isso. Pertencemos aqui sim, porque a mulher pode estar aonde ela quiser.”
Giulia comenta ainda sobre as produções femininas que garantiram boa parte do sucesso e da aceitação dessa nova era em que podemos vivenciar e retratar de diferentes formas os arcos de ícones que finalmente estão ganhando voz. “Você pega, por exemplo, Steven Universe, que foi feito por uma mulher e é o sucesso que é. As pessoas não se tocam que tem uma mulher por trás daquilo. Tem uma equipe maravilhosa, mas acima de tudo começou com uma mulher e uma ideia.”
Mesmo com o caminho indo de encontro à inclusão, ainda há muitos desafios a serem rompidos e barreiras a serem quebradas. Em meados de 2018, com o anúncio da atriz Brie Larson como Capitã Marvel, as suas redes sociais foram alvos de protestos (majoritariamente masculinos) acerca da escolha para viver a protagonista. Porém, a intérprete assumiu uma postura em defesa ao espaço das heroínas e mostrou-se engajada com a causa ao compartilhar mensagens de apoio e ao se pronunciar favorável ao lançamento voltado a esse mercado.
“Mulheres defendendo trabalho de mulheres, e a Brie Larson tá pegando muito nisso agora, talvez pela questão do hate que ela sofreu. Ela tá apostando nisso, nas pessoas que aceitam e compreendem o valor e o peso desse filme. Ela tá dando bastante visibilidade pros artistas agora, isso é muito legal; no Twitter você vê sempre ela compartilhando o desenho do pessoal, curtindo ou comentando, e isso é difícil de ver nesse meio. Ela se provou uma pessoa tão próxima ao público dela, não entendo como as pessoas conseguem falar mal dela, porque ela é muito humilde nesse sentido”, finaliza a ilustradora.